Boris e Winston

 

Boris e Winston

 

Urge fazer alguma coisa com a inspiração.  A chuvinha cai monótona lá fora. O dia é morno e o livro bom. Inspiração nenhuma tem o direito de perturbar essa quietude, e domingo não é dia de trabalhar. Mas a ideia cutuca como uma criança birrenta. Quer atenção. Quer que ela pegue papel, caneta, tire o esqueleto da poltrona e dê trabalho aos neurônios. E eles estão mais prá água de coco e uma rede, que a vida não carece dessa disritmia, dessa aflição moderna.

Ronald Reagan, um famoso marcha lenta, preguiçoso assumido, dizia: “já disseram que trabalho duro não mata ninguém, mas pra que arriscar? “

Eis aí, pra que arriscar? Ela não quer nenhuma responsabilidade de governar a América do Norte e nesse exato momento, ela só quer mergulhar no livro e usufruir a prosa agradável do autor, que antes de ser Primeiro Ministro britânico, era jornalista. Escreve bem o danado! Daí que o senhor Boris Johnson vai colorindo a sua tarde monocórdia com “O Fator Churchill”.

Ela, pra quem não sabe, é fã de carteirinha do Churchill com todo o cardápio incluído, manias, defeitos, decisões erradas aos montes, vaidades e declarações cáusticas que lhe valeram muitos inimigos (verdades são difíceis de engolir). Que a desculpem os que discordam, mas como diz Johnson, “nos riachos regados a álcool do seu cérebro”, estava ali explícita sua genialidade sem paralelo, e uma coragem fora do comum, inclusive aquela que o mundo de hoje não vê: a coragem moral.  Assumia as suas decisões. E que decisões!

Diferente de Reagan, trabalhava num ritmo alucinante. Seu staff vivia de língua de fora tentando acompanhar o chefe.

Infelizmente, ela está mais para o Reagan, que não era lá essas coisas. Tirar a carcaça da poltrona exige um esforço hercúleo. E ela nem quer. Tem alergia aos mi mi mis dessa cultura biruta, mas vai se sentindo vingada. Segundo Johnson, os escritos, cartas, decisões,  discursos de Sir Winston quando são examinados sob a lupa da intolerância vigente, o colocam como  sexista, racista, imperialista, sionista, supremacista ariano e anglo-saxão e partidário da eugenia. É mole ou querem mais?  O bom é que ele caminhava e defecava pra esses arroubos do politicamente correto e emergia do outro lado com ou sem arranhões, mas emergia. Falem mal mas falem de mim. 

Ela acredita em Johnson quando ele diz: “quanto mais se afasta de nosso tempo, o Churchill não pasteurizado pode parecer um pouco forte e picante demais para o nosso delicado gosto moderno”.

É isso. Essa gente com o estomago delicado, cansa. Vai daí que ela prefere se divertir com as façanhas quase sempre pouco corretas do antigo Primeiro Ministro Britânico contadas pelo atual Primeiro Ministro Britânico, do que ficar caçando chifre em cabeça de cavalo, e tentando enquadrar todo mundo na procissão e na ladainha interminável do politicamente correto. Pode-se ser infeliz às suas próprias custas.

Vocês que são brancos que se entendam! Ela não tem nada com isso . E mais, paga pra não entender de “Europäische Witschaftegesellschaft”, que se as mentes privilegiadas de plantão não sacam, é nada mais nada menos que “Mercado Comum Europeu” (foi o Boris que contou, embora o dicionário diga que é Europäicher Gemeinsamer Markt – e isso é só pra livrar a cara dela).

Isso  tudo é trem de Primeiro Ministro pra Primeiro Ministro. Ela volta ao barulho da chuva e à poltrona, que o livro infelizmente, acabou (os prazeres desse mundo são passageiros).

O porteiro interfona que vai fechar a água pra um conserto  não sei onde. Lá fora cai o dilúvio universal. E ela pega outro livro de um menininho  que ouve vozes. Felizmente, não desse mundo, porque aqui só estão falando besteiras.

Então, vamos às vozes do além. Talvez tragam alguma luz.

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                           24/11/2021

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Vingança

 

Vingança

Solange Amado

Temporada 1. Episódio 1:

A galeria ela conhece como a  palma da mão. Frequentemente se reunia ali, em tempos de antanho, com seus companheiros de copo e de cruz. E durante o dia, gostava de percorrer reverentemente seus inúmeros sebos. As prateleiras repletas de bons achados, que ela folheava entre uma birita e outra no andar de baixo. Um lugar repleto de juventude e muitas histórias.

Isso foi há mil anos. Desde então, os copos foram diminuindo e as cruzes aumentando. Os companheiros deram de adoecer, sumir. Alguns até cometeram a desfaçatez de morrer.

Não obstante, ela continua teimando em vagar, muito raramente,  pela galeria escura. Muitas portas fechadas, lugar meio sujo e caótico. Nada a ver com a vivacidade de outrora.

Foi então que alguém que sabe das suas preferências lhe indicou uma das preciosidades de Stephen King, coisa muito antiga. Ela arrisca o fundo da galeria.

Era apenas uma portinha. Prateleiras atulhadas, um caos completo, organização zero. Vida de santo agarradinha com 50 tons de cinza e livros de receita. O cheiro de mofo e poeira comendo solto. Ela avançou no meio do entulho e lá no final do corredor escuro avistou uma mocinha de short, camiseta e cabelo cor-de-rosa. Fazia as unhas e se balançava ao som de alguma música saída do seu fone de ouvido.

“Você teria alguma coisa do Stephen King?” A mulher repetiu três vezes. A moça deu uma última assoprada no esmalte e franziu a testa. “É auto-ajuda?” “Não. É terror”. O que, vamos e venhamos, dá no mesmo, mas a mocinha não sabe disso. Olhou o computador. “Pode ditar o nome pra mim?”. “S, T, E...”. “É King de King Size?” “Não, de King Kong, seu parente”. Não falou, só pensou. “Com K” murmurou educadamente.

Não. Claro que não tinha. A mulher agradeceu e se virou pra sair. Então se lembrou que há muito andava procurando livros do poeta Manoel de Barros. Sempre em falta. Quem sabe entre aquele poeirão havia algo?. Afinal, essa mistureba era a cara dele.

Arriscou a pergunta. A moça franziu a testa. “Quem?”. A idosa disparou porta afora antes que a jovem perguntasse se era auto-ajuda. Mas tinha algo sobre Ademar de Barros. Quebrava o galho?

 

Temporada 1. Episódio 2:

Tarde modorrenta. Sol comendo lá fora, amolecendo o asfalto. Graças a Deus ela estava em Denver, Colorado, onde o livro a transportou com todas as despesas pagas. A princípio, a distância entre Denver e a porta da sua casa não deixou que ela ouvisse o ruído. Aí, água mole em pedra dura... um miado. Ela abriu a porta e ele entrou chispando, mijou no tapete e ficou ali tremendo de medo, pequeno e cinzento. Só um gatinho perdido. Caracas! Ela não tem comida pra gatos e nenhuma queda especial por esses seres, principalmente quando mijam no seu tapete. Botou leite e água pra criatura que, visivelmente tinha fome e uma mãe distraída.

O porteiro localizou a mãe da criatura, que estava “trabalhando” e o gato era useiro e veseiro em se perder nos corredores escuros.

A tarde inteira a senhora teve de se dividir entre o livro e o bichano até a mamãe distraída ir  buscá-lo.

E adivinhem! Mamãe era nada mais nada menos do que Cabelo Cor-de-rosa, ela ao vivo e em cores, K de King Kong e até rolou um papo de boa vizinhança. A senhora ficou sabendo que o sebo do fundo da galeria é do tio, que pra não fechar o negócio mambembe, paga uma mixaria pra sobrinha, e a família banca a moradia. De livros mesmo ela não entende bulhufas, seu negócio é balada e pagode. E como é que pode alguém gostar de um troço chato como ler, e ler livros velhos. Fala sério!

Temporada 1. Episódio 3 (Final)

Nosso prezado gatinho já fugiu mais três vezes e bate o ponto na porta do apartamento da velha senhora que,  coração mole, abre  a porta e ele mija no tapete. Pontualmente.

Ela ainda não esfolou o gato ou sua dona de cabelos cor-de-rosa. Por enquanto, gasta o seu ódio e ressentimento esfregando o tapete pra tirar o cheiro de mijo.

Não obstante a cruz já estar de bom tamanho, ontem, véspera de feriado, a senhorita King Kong passa um óleo de peroba básico na cara e bate na porta da velha senhora. Sem mais aquela, pergunta se ela pode ficar por uns 4 dias com seu gatinho pra que ela, King Kong, viaje com seu namorado.

E aí, Deus seja louvado! Hora de vingar o tapete mijado! A senhora idosa responde candidamente a uma mocinha estupefata: “Não posso, meu namorado é alérgico a gatos”.

Já não se fazem vendedores de livros como antigamente.

                                www.versiprosear.blogspot.com.br    10/1021

Viagens internacionais

Viagens internacionais

Sorry, sir, mas hoje bateu a maior vontade de estar em Londres. Saudades da Rainha, de Trafalgar Square,  da ponte de Waterloo, do Palácio de Buckingham.

Uma vez quase tomei chá com Elizabeth II. A gente só não se encontrou porque eu nunca estive lá, mas Elizabeth está. Firme, desde que eu nasci. O desencontro foi por puro capricho do destino e porque ela tem joanetes. Ou pelo menos tem cara de que tem. Você me perguntaria o que um Five o’clock tem a ver com joanetes.  Não sei, mas eu também não gosto de chá, nem de joanetes. E meu Inglês é tão capenga que meu book is eternamente on the table porque falta vocabulário para colocá-lo em outro lugar.

Sei que water é água, mas periga pensar que Black é branco e White é preto, o que é politicamente incorreto e eu me lasco toda. Elementar, meu caro Watson. Eles me confundem demais. Não facilitam pros primos pobres.

E o tal de pull e push? Como é que eu vou saber quando é que eu puxo, quando é que eu empurro?. Não dá pra ficar diante da porta tentando conjuminar o tico com o teco. Tem que ser vapt vupt. A fila anda. Tem gente atrás. E a fila de neurônios de um idoso leva tempo pra se reorganizar. É brabo!

Esse negócio de língua estrangeira é dificultoso. Os banheiros então, me deixam louca, uma vez, na Alemanha, só pra levantar a tampa do vaso quase que tive de pedir ajuda aos universitários, tantos eram os botões pra apertar e aguinhas frias e quentes pro bumbum. Meu weltanschauung deu um nó. E olhem que era só o número 1! Na Holanda foi um perrengue. Depois de algumas cervejas numa pracinha, lá fui eu para um banheiro público subterrâneo e todo informatizado. Meu parco QI conseguiu penetrar na casamata, surpreendentemente espaçosa e com algumas pessoas dentro. Mas o que me espantou é que todas as portas eram de vidro transparente. Oh! Deus! Todo mundo ia me ver sentada no trono. Fiquei meio vexada. Nem sou da família real da Holanda! Aí falou mais alto a urgência da hora. Vão todos pra tonga da mironga! Torci o trinco da porta de vidro e pronto! A porta se tornou opaca, com lindos desenhos. Foi só um susto. Coisas de capiau que vai espiar essas modernidades.

Experiência transcendental teve a minha faxineira. Foi comprar um virol pra me dar de presente de aniversário. Aqui mesmo, na terrinha. “Queen ou King?”. Diz a vendedora atenciosa. Ela agradeceu, voltou pra casa, pegou um virol velho e voltou pra loja. “A marca é essa”. Fui presenteada com a Rainha. Não foi propriamente Elizabeth II, mas como diz minha sobrinha pequenina: “cabeu”!

Devido a todos esses perrengues linguísticos, e como a libra não colabora, posso desistir de Londres e dar com os costados em Paris, pelo menos juntei cem euros. Ô Glória! Na França, você falando Bonjour e Merci, o francês já desmancha o bico e acolhe o brésilien com mais simpatia. Tirante que é mais fácil saber que entrée é entrada e sortie é saída (e não sorte grande). Ninguém precisa entrar pela saída ou vice-versa.

Portugal também não é ruim. Lisboa tem o euro tanto quanto, mas também tem o fado e o Tejo. E a língua é moleza. Saída e entrada é tudo la même chose. Até que você faça uma compra em um shopping cheio e alguém lhe diz pra se “enfiar no rabo da bicha”. A bicha em questão é enoooooorme. E sem chance de você alegar sua condição de idoso estropiado.

De qualquer maneira, do jeito que as coisas andam, não se preocupem, essas são só elucrubações de uma tarde chuvosa. A grana mesmo só dá para uns três dias em New Lima, Seven Lakes ou Holy Lake. Monkeys talvez, se uma alma caridosa quiser rachar as despesas.

Informo que meu passaporte vacinal está em dia, já aprontei uma sacola de livros, outra de remédios. E no fundo da gaveta tem um maiô catalina (com duas polegadas a menos) que ainda dá pro gasto.

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                        04/11/2021

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Que coincidência!

 

Que coincidência!

Solange Amado

Hoje a coisa tá braba! A tia leu não sei aonde que viver é depender dos caprichos  do nosso corpo. E o seu anda cheio deles. Qualquer coisa ele se rebela, faz birra, empaca.

Em geral ela não bate de frente. Lá dentro da cachola, tico e teco ainda conversam amigavelmente  sem dar muita bola para o que se passa na periferia desse corpo cansado. Mas hoje tem pressa.

Toma um banho, bota um perfume. Senta-se com papel e caneta. É domingo, tem um batizado em família. Bom se aviar. Antes  porém, espera que as palavras caiam dóceis no papel e cumpram a sua missão de formar uma crônica razoável, antes que Papai Noel venha e encha o saco com os badulaques costumeiros.

Meia hora transcorre antes que tico e teco encontrem o caminho das pedras. Como diria o cronista Humberto Werneck, a tia necessita urgente de uma “lipoinspiração”. Vai ter de instilar um pouco de gordura nesses neurônios depauperados pela pachorra dominical.

O tempo “ruge”, como leão faminto. Ela se preocupa. Meia hora é pouco pra juntar palavras que façam sentido. Se ela vivesse de letras estaria fulminada. Fica nervosa.

Tem precisão? Diria a avó. Não. Não tem. Mas a velhice se irrita fácil. Melhor caçar rumo. Encontra um monte de mensagens no zap de família: “Qual é a rua da Igreja?” “Tenho de botar no waze”. “Qual é a paróquia?”. “Rua ou avenida?”.”O número?”.

Ela não sabe como, mas consegue chegar lá, não obstante.

A cerimônia já anda pela metade. O padre arenga, criancinhas choram, mamadeiras passam de mão em mão. A tia se senta ao lado de sua sobrinha-neta de seis anos. A garota está na maior estica. O pai severo no banco de trás ameaça com as punições costumeiras caso o trem do comportamento saia dos trilhos. A garota, um ferrinho de dentista nas perguntas afiadas, coloca a bonequinha bem sentadinha a seu lado, faz recomendações de que não dê um pio e atira a primeira pedra:

- “Tia, qual a diferença entre Igreja e Paróquia?” A tia não sabe. Impossível pedir ajuda dos universitários. Então, inventa uma mentirinha. A menina desconfiada, engole (na volta, a tia vai direto para o google. Vê que improvisou errado. Mas ninguém precisa saber disso). A paz reina durante algum tempo.

Lá na frente, o padre continua sua arenga sobre o quanto é importante o batismo, etc. e tal. A menina cutuca a tia: “Você tem certeza de que fui batizada?” Alívio. Já pode passar no vestibular para o céu.

Nesse momento, a boneca cai embaixo do banco da frente com a bolsinha cheia de trequinhos.Toca o pessoal do banco a pescar boneca, bolsinha, pentinhos, batons. “Ela está cansada”. A menina explica.

A paciência do pai no limite. O padre continua a arenga. Já passou da hora do almoço. “Mamãe, tô com fome!” Sujou!  Pensa a tia. Naquela Igreja ou Paróquia enorme, nem sinal de comida. Mas bolsa de mãe esconde coisas insuspeitadas. Ela saca de lá uma banana e resolve o problema.  Problema agora é a casca. Difícil, mas a garota encontra uma lixeira.

De qualquer maneira ela explica pra tia que a boneca está “enjoadinha”, com fome e calor. O padre continua arengando e aí a “enjoadinha” cai outra vez debaixo do banco de trás. A tia se oferece para passear um pouco do lado de fora com a bonequinha para acalma-la, cuidando da bolsinha e dos trequinhos.

Quando retorna, o desespero tomou conta da galera: a menina sumiu! Todo mundo a procurar. Será que foi raptada? Essa mania de conversar com todo mundo! Creindeuspai”.

A família se divide norte-sul-leste-oeste. A tia cobre o lado de fora. Nem sinal. Foram minutos de pânico. Até que a pequena surge saltitante. Aquele tiquinho de gente, de olhinhos pretos e vivos: “Uai, gente! Eu fui fazer xixi”.  Não é que a danada, naquela Igreja ou Paróquia imensa descolou um banheiro?

Não parou por aí. Após o batizado, toda a família foi comemorar em um restaurante. Ao entrar, ela viu uma mesa com algumas senhoras que também foram ao batizado e que ela não conhece. Não teve dúvidas. “Eu vi vocês. Por acaso não estavam na Igreja há pouco?” “Afirmativo” foi a resposta. “Meu Deus! Mas que coincidência! Vieram para o mesmo restaurante!”

É então que a tia bota um ponto final nesse seu texto lipoinspirado. Maior coincidência!”.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                       22-11-22

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Falta de assunto

 

Falta de assunto

Solange Amado

 

Alguém disse  um dia, que Rubem Braga era bom de Escrita. Bastava ter um tema e ele metia bronca. Mas era melhor ainda quando não havia assunto.

A tia estava modestamente alí: papel, caneta, que o computador faleceu.  A cadeira, a mesa e um furinho na parede. Não tem assunto nenhum e nenhum parentesco com Rubem Braga. Essa é a grande tragédia. O buraco não é só na parede. É na cachola também. Isso é o mais brabo.

 Claro, ela pode cavucar mais um pouquinho e tirar água da pedra. Já fez isso, mas o buraco era mais embaixo. Tinha só dez anos e uma professora de português perversa. Toda semana botava uma pedra no caminho das redações para os alunos tropeçarem, que nem Carlos Drummond de Andrade. Tentativa inútil. A turma tinha jogo de cintura e o estoque de palavras era inesgotável. Ou pelo menos ela achava. Descobriu que estava redondamente enganada.

Agora a coisa está preocupante. Quanto mais examina  no embornal do seu cérebro não encontra um crescimento muito grande de palavras. Vai ter de usar da criatividade pra dispor no tabuleiro do papel seu modesto estoque.

A gaveta de palavras não tem lá mesmo um ativo muito grande, mas isso nunca foi o mais importante.  A tia não se intimida. Quem morre de medo se enterra vivo. Então, é ir em frente. Não é a quantidade, mas a qualidade. Tem gente pensando que se trocar um a por  um e vai mudar a face do mundo. Bobagem, o buraquinho vai estar sempre lá.

Palavras não são papel higiênico que quanto mais merda se faz no mundo, mais precisamos aumentar o estoque. A tia até que gosta de se prover de fardos de papel higiênico, rolo grande, macio, folhas duplas. Quem dera que fosse assim com palavras. Não é. Podem-se vesti-las com inúmeras roupagens. E usá-las muitas vezes. Lado esquerdo e direito. Papel higiênico usa-se uma vez e joga-se fora.  Babau.

Aliás, palavras sobrevivem porque não tapam o buraco na parede, porque não têm a pretensão de botar ordem no galinheiro. Não tem nenhuma na prateleira esperando pra limpar a sujeira. Elas não têm compromisso.

Escrever levanta voo. O céu é o limite. Não é preciso estocar palavras. É preciso deixar que elas  façam piruetas e pousem onde quiser. Se caírem em bocas de matildes, já cumpriram o papel.

Palavra é  que nem o bando confuso, estropiado e improvável do cangaceiro Lampião:

                                   “Pode tê corpo de gente

                                    Mas gente mesmo não é

                                    Acho até que não nasceu

                                     Das entranha de muié”.

Palavra é assim. Nasce da aflição da hora, da precisão de tampar o buraquinho da parede, da agonia da folha em branco. Palavra nasce.

Como boa mineira, a tia pergunta: “é fia de quem?”

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira                                                      20/08/2022

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Sumô feminino

 

Sumô feminino

Solange Amado

 

Ela estava lá, imersa na sua atividade preferida: fazer nada. Deslizava pela correnteza do livro que, de repente, a levou até o outro lado do mundo. Japão. De quimonos e cerimoniais.

E ela estremeceu de indignação. Pois é, feministas, Sabiam disso?  É intolerável! Boquiabram-se: no Japão, as mulheres não podem lutar Sumô. Sumô é só pra homem macho. Clube do Bolinha. Meninas não entram. Proibidissimo!.

Quem sabe as mulheres fazem uma passeata de protesto? Uma Carta para a ONU. Incorporam a Greta no pacote e podem chegar lá. Mulheres à luta!.

Ela desconfia que vai ter pouca adesão do mundo feminino só por um detalhe: os lutadores de Sumô têm que se alimentar de, no mínimo, 20 mil calorias por dia. Toca a consumir carboidratos e proteínas. Triturar muita carne.

A mulherada à cata da esbelteza, comendo uma folhinha de alface por dia, dificilmente vai se entusiasmar pela dieta e pela redondeza do manequim de um lutador de Sumô. O povo vai crescendo pros lados que nem balão de São João. E morre mais cedo do que o resto da população, literalmente entupidos de gordura.

Mas ficam famosos. Estádios enormes cheios. A mulherada vai ao delírio. A coisa pega fogo. Ela viu uma luta pela TV. Caracas! Se tem de ser fanático, seja fanático por uma boa causa. Conselho de japonês.

A luta em si  é coisinha pouca. Um peido. Dura pouco mais de 1 minuto, se tanto. A arena é um círculo no chão. Duas redondezas, duas circunferências avantajadas como dois elefantes indianos, se atracam e se empurram para fora do círculo. Quem se esborrachar primeiro lá fora do círculo, perde.

Só isso. Sensacional! Não cansa o expectador. Coisa assim de coelho: “vai ser bom, não foi?” Não tem sangue. Isso é bom. A plateia faz uma catarse aos berros, empurrando um dos elefantes pra fora: “Chispa! Saia do meu laranjal!”.

Ela desconfia que é por isso que o japonês é tão educado. Ninguém bota a sogra porta afora, nem a mulher, nem o marido ou o cunhado chato. Deixa pra empurrar o bando todo da arena do Sumô.

E tem uma vantagem, cuja, interessa muito à mulherada: a indumentária. Mais reduzida do que nas praias brasileiras: nada além de uma tirinha na frente para “proteger” as partes pudendas (eles lá é que dizem), perdidas no meio de toneladas de gordura. E atrás, um cordãozinho passando bem rente ao fiofó. Nas praias nordestinas a peça tem o nome de “cordão cheiroso”.

Só não dá para ser muito fashion com esse modelito de Sumô. Grandes costureiros não podem fazer grandes extravagancias. Talvez uns pendurucalhos de strass. Não se sabe.

Ponto negativo para o público feminino é que os lutadores de Sumô na vida cotidiana, não podem de jeito nenhum usar trajes comuns, calças, camisas, camisetas. Só quimonos tradicionais japoneses. Outro profissional que morreria de fome na comunidade do Sumô é o cabeleireiro. O coque no alto da cabeça é único e obrigatório. Ela não sabe se lutador de Sumô pode ser careca. Vai ver é proibido também.

Ah! Mas tem algo que ela deixou pra trás,  e que vai fazer brilhar os olhos do mulherio e atrair um bocado de assinaturas para a carta a ser enviada  aos “Direitos Humanos”.É que se você for bom mesmo nesse jogo de empurra-empurra, pode ganhar de 50 a 250 mil dólares por mês ou mais.

Ela já começou seu regime de 20 mil calorias. Engordou 2 quilos. Saiu na frente. Melhor o mulherio se apressar! 

 

 

 

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira          -    08/11/2022

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Inutilezas

 

Inutilezas

Solange Amado

 

Não sou apenas uma. Isso me consola. E me liberta. Porque não sou razoável.    Nem coerente. Não quero ser e não preciso ser.

Dizem que antes de descer a montanha de trenó, temos de levar o trenó lá em cima. Nunca desci de trenó que eu não sou besta. Desci de a pé mesmo, que só me carregar já é um esforço. E fui jogando culpas pelo caminho. Maior achado. Ficou leveza. Demorou mas me destralhei.

Na verdade, meu passatempo é caraminholar. A especialidade é o inútil. Se tiver de ter coerência, se tiver de ser tudo certinho, tô fora! Palavra não tem de bater continência, formar fileira, fazer fila indiana, marchar com coerência, com a lógica absurda que a realidade exige. Palavras são vagabundas de nascença. Graças a Deus não tenho razão. Só palavras adolescentes têm razão. E estão enganadas. Eu apenas existo e tenho dúvidas.

O melhor da escola é o recreio. A imaginação é o recreio da realidade. Aí eu posso brincar. De prático não sei nem bater um prego. Fiquei especialista em inutilezas, como diria Manuel de Barros. Sofri disso a vida inteira.

Minha mãe dizia que a sem jeiteza me mandava lembranças todos os dias. Era simpatia, quase amor. A sem jeiteza se identificou comigo. Não fiz nenhum esforço para isso. É paixão assim de graça. Não careceu de nenhum esforço.

Fui pra Escola de Costura. Tentei costurar as palavras num manequim de proporções elegantes e politicamente corretas. Levei bomba. As palavras teimavam em se soltar, ultrapassavam o molde e as linhas arrebentavam e misturavam cores e texturas.

Cozinhar também tentei. Talvez fosse a solução. Mas não se podem cozinhar as palavras. Elas perdem o tutano. E o gosto está no tutano das palavras. E a casca? Aquela coisa meio rude, meio crua. Dá o maior tesão no escrito. E tempero bom sai na hora. Não pode ser programado. Não deu certo. Palavras escapam a todas as receitas.

Meu pai dizia que se eu comesse as sementes da melancia, ia nascer um melancial na minha barriga e os galhos iam sair pelo nariz. Talvez, se a gente comer palavras possa nascer um palavrial dentro da barriga. Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, provérbios...

Mas não é uma boa ideia. Não se sabe como esse material será expelido. E ao que parece, tem muita gente comendo palavras e certezas todos os dias. Esse método não garante nenhum escritor ou poeta digno dessa “arte de não dizer nada” dizendo tudo.

Afastei-me da cozinha, da costura e do tricô por absoluta incapacidade de me dedicar a utilezas.

Nem posso dizer que me dedico ao ócio criativo. Se eu soubesse o que é isso, Manuel de Barros ia se haver comigo. Podia chama-lo no braço e fazer um sexo selvagem de poetagens e inutilezas

Por enquanto, só posso pedir desculpas que hoje não rolou inspiro nenhum. E não estou disposta a levar meu trenó e minhas culpas morro acima. Sobraram a sem jeiteza e essa mulher que sou. Um verso reverso de incertezas.

 

 

 

Maria Solange Amado Ladeira    02/11/22

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